PECA 2013

Primeiros contatos e conversas iniciais

Em 2012 a F14 Fotografia era uma (ainda mais) jovem pequena produtora de conteúdo em imagens. Tínhamos 2 anos de atuação prestando serviço em produção de imagens mas sentíamos que aquele ainda era um momento inicial. Um momento que precisava ser de intensa dedicação a formação e a buscar oportunidades, contatos e parcerias. Estávamos debruçadas a estudar determinados recortes da História da Fotografia; alguns fotógrafos/as e as vertentes do desenvolvimento de seus trabalhos ao longo de suas trajetórias.

A fotografia documental enchia nossos olhos e nos aquecia/inquietava de maneira sem igual: os projetos de pesquisa em campo, a vida na estrada por meses seguidos; as dinâmicas para conseguir acessar e negociar o registro em ambientes ou lugares desconhecidos, com pessoas que não necessariamente estariam confortáveis com aquilo – muitas vezes nem mesmo estavam de acordo. Aprender com muita sensibilidade a acessar lugares e pessoas, sem ser invasivo, territorialista e “desbravador”, sem cair na armadilha de, em nome de uma causa, explorar o que pretensamente seria “diferente” , “exótico“. Através do estudo da obra de fotógrafos/as, de muita conversa e muitas referências paralelas, nos demos conta que mesmo causas ditas humanitárias podem acabar explorando a imagem de pessoas reais com um discurso ultrapassado, em nome de “fazer um bem“.

Foi nesse cenário todo, no meio desse processo, que em setembro/outubro de 2012, começamos a conhecer o PECA.

Desde os primeiros contatos ficou bem evidente que o Programa tinha bastante relevância para a Comissão de alunos/as 3o. anistas que a cada ano eram responsáveis por organizar uma nova edição. E que tinham um sentimento de responsabilidade por cuidar, organizar e executar algo que, naquela 9a. edição sendo pré-produzida, já era considerada uma tradição entre os alunos. Uma tradição muito valiosa por si só, pela própria natureza da existência do PECA como um programa de atendimento popular de cunho assistencial e pedagógico. Nessas conversas iniciais a aluna-coordenadora ressaltou bastante que os dias em campo, durante a execução do programa de atendimento, gerava uma carga emotiva, e que isso era natural da proximidade entre alunos, participantes e pacientes por muitos dias seguidos. E que podia então ser considerada como uma das principais características do PECA: a beleza de se ver emoções sendo vividas entre pessoas, motivadas por dinâmicas de cumplicidade e confiabilidade plenas. Era algo que ultrapassava os nomes das funções desempenhadas (aluno, médico, voluntário, paciente, etc); e sim seres humanos desenvolvendo relações entre si, interessadas unicamente em fazer acontecer um processo de colaboração mútua.

Esse aspecto nos encantou demais: o colaborativo-cooperativo. O fato da organização inteira estar sob responsabilidade de jovens de 20 poucos anos em plena formação profissional em uma área do conhecimento que não toca processos administrativos; e a informação dessa característica do envolvimento humano. Ouvindo as falas da aluna-coordenadora sobre como era feita a organização do PECA, entendemos com muita clareza qual era o tamanho da responsabilidade que aquela moçada estava envolvida, qual era o nível de detalhamento de tarefas e a necessidade de fazer uma gestão muito fina no relacionamento com os/as colegas que seriam voluntários/as no trabalho de campo. Era lidar ao mesmo tempo com burocracias, organizações meticulosas e emoções de muita gente.

Saímos muito encantados  com o que tinha acabado de conhecer nessas primeiras conversas. E agradecido pela preocupação da Comissão Organizadora em contar tudo com muito esmero, com informações precisas que nos dessem condições de elaborar mais que um orçamento de cifras para atender um serviço, mas uma proposta de trabalho digna da importância de contar, em fotografias, a estória do que seria mais uma edição do PECA. Vibrávamos por dentro, com o coração cheio, quase transbordando, de tanta vontade.

Estudos de sensibilização e proposta de trabalho

Nos dias que se seguiram àquela primeira conversa com a Comissão, fomos aos poucos achando caminhos para montar uma proposta de trabalho. De imediato imaginamos que as fotos precisavam gerar, em quem as fosse ver, tanto a sensação de distanciamento de um olhar externo, quanto (e principalmente) a proximidade do olhar de quem está ali dentro fazendo o PECA acontecer em campo.

Pensamos também na questão, bem séria e relevante, de como deveria ser elaborada a intenção do registro fotográfico do Programa Expedições, no qual seria necessário mostrar as pessoas pacientes do atendimento. A responsabilidade de retratar gente que vive, possivelmente, em alguma condição de vulnerabilidade social. Pensamos que refletir sobre isso desde o início, desde essa etapa de proposta de orçamento/trabalho, seria fundamental para mostrar que havíamos entendido bem o ponto de que o objetivo do trabalho não seria a foto pela foto, mas a foto como um veículo para o PECA se comunicar, transmitir seus ideais, representar suas crenças como grupo de alunos voluntários em formação profissional; para documentar uma época e um lugar de parte de uma sociedade; e para propor reflexões fossem elas particulares e/ou coletivas.

Nessa época frequentávamos um grupo de estudos em fotografia no qual semanalmente debatíamos a produção de imagens ao longo da história, percorrendo e discutindo o trabalho de diversos fotógrafos, brasileiros e estrangeiros. Durante os encontros desse grupo, nos impactaram muito as fotos da Dorothea Lange e do Walker Evans, ambos estadunidenses. E foram os livros deles que peguei para estudar antes de começar a escrever a proposta de trabalho para o PECA :

 

Dorothea Lange e Walker Evans

© Dorothea Lange (1895 – 1965) ; © Walker Evans (1903 – 1975) , + infos: Library of Congress Prints and Photographs Division 

Dorothea Lange foi uma das mais importantes fotógrafas norte-americanas, e se notabilizou nos anos 1930, quando fez parte da equipe de fotógrafos da Farm Security Administration (FSA). A FSA foi um órgão criado em 1935, pelo presidente americano Franklin Roosevelt, para ajudar a população de áreas rurais que foram afetadas pela Grande Depressão de 1929. Existiu até 1949 e, para documentar a vida das famílias e cidades, teve uma divisão fotográfica onde se formaram alguns profissionais que se tornariam clássicos, como Walker Evans, Carl Mydans, Gordon Parks e a própria Dorothea Lange. O acervo da FSA é considerado um dos mais importantes registros da vida nos EUA do começo do século XX. Fotojornalista e fotógrafa documental, a obra de Lange humaniza as consequências da Grande Depressão e da 2a. Guerra Mundial na sociedade norte-americana. Lange era filha de imigrantes alemães e nasceu em Nova York. Nos anos 1920, tinha um estúdio em São Francisco e uma vida estabilizada com marido e filhos. Com a Grande Depressão no auge, após a quebra das bolsas de valores de Nova York, Lange trocou o estúdio pela fotografia de rua e percorreu mais de 20 estados americanos registrando as condições de vida que assolavam o interior naquela época. Durante a 2a. Guerra, ela documentou os campos de internação para japoneses nos Estados Unidos, trabalho tão veemente de seu olhar e da forma de se expressar, que foi confiscado pelo Governo e ficaram inacessíveis por muitos anos. Hoje está disponível na divisão de fotografias do site do arquivo nacional do país e na Biblioteca Bancroft da Universidade da Califórnia.

Walker Evans foi um dos mais influentes artistas do século 20, além de ser considerado o progenitor do fotojornalismo documental. Durante cinquenta anos, retratou com olhos de poeta e precisão de cirurgião expressões vernaculares da cultura americana moderna: cafés baratos, quartos simples, ruas centrais de pequenas cidades, povos indígenas na beira das estradas. Sua fotografia enfatiza o papel do espectador e o poder poético de temas comuns. Ao lado de fotógrafos como Dorothea Lange, Evans foi incumbido da documentação da vida de moradores de cidades pequenas, com o objetivo de demonstrar como o governo estava se esforçando para melhorar a vida daquelas comunidades. Mostrando pouca preocupação ideológica em seguir os itinerários sugeridos, Evans viu a pauta como uma oportunidade de retratar a essência da vida americana. Suas fotografias de estradas, arquitetura, igrejas rurais, barbearias e cemitérios revelam um respeito profundo por essas tradições, muitas vezes negligenciadas nas grandes cidades. Desde suas primeiras aparições em jornais, revistas e livros no final da década de 1930, essas imagens icônicas entraram na consciência coletiva do povo americano, enraizando-se profundamente na memória do período da Depressão.

 

Percebemos então que não adiantaria ficar imaginando mil coisas para montar uma proposta de trabalho que parecesse mirabolante e mágica. Quanto mais simples e direto ao ponto, nessa etapa, melhor. E se fossemos escolhidos para ir a campo com o PECA, as próprias dinâmicas indicariam os caminhos com naturalidade e espontaneidade. Nesse momento era hora de simplificar e lá na frente confiar, estar atento e pronto para fotografar.

O portfólio de imagens do PECA precisava emocionar e sensibilizar, conforme a Comissão Organizadora havia ressaltado. Para isso eu acreditei bastante que uma mistura de observação, conversa, sensibilidade e técnica poderia ser um bom caminho para produzir uma documentação fotográfica. Uma narrativa de imagens mostrando a valorização da vida e o complemento na formação humana de futuros profissionais da Saúde.

E assim, no fim daquele ano de 2013 foi confirmada a escolha da F14 Fotografia para produzir o registro fotográfico do PECA 2013.

 

 

Registro fotográfico em conjunto

Ao longo dos dias as crianças demonstraram muita curiosidade com os equipamentos fotográficos e vontade de usá-los. “Tio, posso tirar uma foto ?” Como não se encantar com um pedido desses ? Equipamento é para ser compartilhado com quem quer ver o mundo pelo visor !   :)

Orientávamos para a alça ficar sempre no pescoço, ajudávamos a posicionar as mãos para segurara a câmera firme com segurança e confortável para uso, e pronto! Era só deixar a moçadinha à vontade para fotografar o que quisessem a partir do que viam e sentiam naqueles instantes.

 

Fechamento: um depoimento em 1a. pessoa

Fotografar o PECA 2013 foi mais do que um novo trabalho para um novo cliente. Foi uma experiência transformadora, tanto profissional quanto pessoal. Perceber-me trabalhando em campo, contribuindo numa causa justa e urgente, com pessoas de uma geração muito mais jovem, virou algumas páginas importantes.

O fato de ter sido contratado diretamente por esses/as jovens, fez com que eu percebesse outras dinâmicas de trabalho das que conhecia até então, dentro e fora da fotografia. As múltiplas sensações transmitidas por todas aquelas pessoas, independente se as/os jovens alunos, pacientes de qualquer idade ou das demais pessoas que conheci e tive chance de conversar. Eu era um vulcão de sentimentos acumulados depois de 7 dias vendo dedicação incondicional ao próximo, vendo renúncia a confortos pessoais, vendo vontade de aprender e de ajudar um colega a aprender também. Por ter ouvido pela primeira vez na vida o 1o. choro de um recém nascido (quando estava fotografando as cirurgias chegou uma gestante nos últimos instantes do trabalho de parto, gritando muito pelos corredores da Santa Casa local, e em questão de segundos, depois dos gritos dela, veio o choro do/a neném).

Eu estava muito cansado mas me sentia forte. Fortalecido, melhor dizendo. Fortalecido mas sentindo que estava prestes a derramar.

Na última noite antes do retorno, já sem programação oficial que precisasse de registro fotográfico, fui dar umas voltas no Centro de São Sebastião. Caminhei pelas ruas estreitas de casario colonial. Fotografei uns meninos andando de bicicleta, mas sem real intenção. Achei um boteco onde alguns caiçaras bebiam, comiam e viam um futebol qualquer na televisão. Pedi uma cerveja e encostei cotovelo no balcão para beber e ouvir do quê falavam.

Fiquei ali um tempinho e atravessei a rua para sentar na calçada. Precisava falar com alguém, ouvir na orelha alguma voz querida. Resolvi ligar na casa de um camarada, um velho amigo de adolescência que há alguns anos antes havia mudado para o Centro Oeste com a esposa e os filhos. Calculei mentalmente que seu moleque mais velho devia estar com uns 7 ou 8 anos. Liguei.

Uma criança de voz firme e muito educada atendeu. Era ele, e me identifiquei para tentar ativar um papo. Nas poucas vezes que havíamos estado em algum ambiente em comum, nunca uma conversa nossa tinha sido ativada espontaneamente, ainda mais por telefone. Conversamos um tempinho, amenidades e depois ele passou o telefone: “Pai, é o Pepe” – assim com tanta naturalidade como se fôssemos amigos que se encontram com muita frequência. Solucei algumas vezes antes de conseguir falar algo novamente. Meu camarada, já na linha, ria aguardando eu retomar o fôlego para conseguir voltar a falar alguma coisa.

 

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