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Emoldurando janelas (parte 2)

Emoldurando janelas – parte 2

São Paulo, 23 de setembro de 2020
… (continuação da parte 1)
 
Minha curiosidade com a cidade foi se manifestando aos poucos, à medida que meus trajetos de adolescente me levavam a circular distâncias e lugares cada vez mais longe de casa. O primeiro aspecto que chamava atenção era a topografia, e como caminhar exigia fôlego para encarar ladeiras em diversos bairros por onde passava. Águas escorrendo pelos cantinhos das ruas, mesmo em dias sem chuva, era algo difícil de entender, tanto quanto os canos que saíam de dentro de calçadas e jorravam água direto para a sarjeta. De onde vinha aquela água toda ? Linhas de ônibus, conexões, terminais, nomes de ruas, pontes, rios. Os lugares iam me apresentando a cidade e deixando indícios de sua história e da geografia na qual está construída. Pouco a pouco o mapa da cidade (melhor dizendo, da parte dela que era minha realidade de cidade) ia se fixando na memória, assim como algumas referências dos significados dos lugares. Locomover-me em bicicleta, a partir de determinada época, proporcionou uma conexão definitiva com a cidade. Enfim eu estava tranquilo e gostando de viver onde vivia, sem me sentir preso a um lugar onde já não estava, vivendo à base saudades (que dói e cansa depois de um tempo).
 
A prática fotográfica foi fazendo parte desse processo, na busca por documentar os convívios que iam acontecendo. Fotografava, sobretudo, amigos e amigas. O registro em imagem ficou, durante muito tempo, restrito ao que me trazia esse conforto emocional. E isso dizia respeito às pessoas com quem eu estava conectado em amizade – as próximas e as distantes. Um processo de autoconhecimento e de reconhecimento de valores de vida. Tão marcante que reverberou, anos depois, na forma como eu penso meus próprios relacionamentos, na maneira como busco me sensibilizar para execução de uma pesquisa de campo ou como procuro despertar em outras pessoas (no caso, pessoinhas) a mesma curiosidade que um dia foi tão importante para mim.
 
A seguir conto algumas delas.
Documentação de convívios como sensibilização dos olhares… e do compartilhar a vida.
 
GABRIEL GÁBI GABIRUSCO Em abril de 2013 nasceu o Gabriel, filho de um grande amigo a quem considero um irmão mais velho. Seu pai e eu somos amigos desde os 8 ou 9 anos de idade e nossa amizade – juntamente com seu irmão Guga – foi uma das que se fortaleceu mesmo depois que nosso convívio presencial cotidiano ficou separado pela longa distância de uma Via Dutra inteirinha.
 
Morando em cidades diferentes, levou um tempo até que eu tivesse a primeira oportunidade de conhecer o Gábi pessoalmente, o que só aconteceu quando fui ao Rio de Janeiro em dezembro daquele ano. Ele estava com uns 9 meses de idade e eu já tinha ouvido muitas histórias sobre como ele vinha se mostrando um garoto muito especial.
 
Cheguei na casa deles com a câmera na mão e pronta para ser clicada. Quando a porta abriu eu estava olhando no visor e me deparei com um molequinho sentado nos braços do pai, com carinha que era meio curiosidade, meio desconfiança. Naquele instante exato desejei com força que aprendêssemos juntos, ao longo do tempo, a ser muito amigos um do outro.
 
Em outra visita mais ou menos uns 2 anos depois cheguei e encontrei o Gábi na cozinha tomando café da manhã sozinho, todo independente. Dizia que gostava de comer “biscroito” e adorava granola. Acordava todo dia de bom humor e caía na gargalhada quando mostrava o sorriso mais safado do mundo com a boca cheia de farelo. A noite fazia questão de mostrar que já sabia escovar os dentes sozinho, sem esquecer o céu da boca que era para deixar as estrelas brilhantes – assim dizia.  [ parêntesis no relato para mandar um salve ao  Bernardo França, que participa da sensibilização artística do Gábi desde que ele nasceu  \o/ ]
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"São Paulo é legal !" , Vanessa Sobrino e Bernardo França - Ed. Olhares/2013
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© Gabriel, 2019
Foi nessa vez que o Gábi, pitoco de moleque, fez uma pergunta linda demais:Tio Fili, posso fazer uma foto também ?   Sorrindo profundo ajustei o comprimento da alça da câmera para a altura dele, coloquei no modo automático e disse para ele se divertir até cansar.
 
O Gábi então fotografou com toda a pureza do seu olhar de 2 anos de idade. Suas mãozinhas e a câmera pareciam uma coisa só. Olho no visor, dedinho no disparador e a outra mão em bandeja dando mais apoio por baixo da câmera, e lá foi o Gábi ver com mais do que os olhos.
 
Fotos de brinquedos, muitas ! Fotos da mãe, da irmã, do próprio Tio Fili… e até do pai tomando banho. “Peraí Gábi, volta pra cá !
 
Filho de pai e mãe apaixonados por livros, Gábi teve desde cedo estímulo à leitura e expressão visual, o que somado ao seu talento para desenhar (é de cair o queixo, brilhar os olhos e explodir o peito a expressividade dele!), comprova que educação na primeira infância também se faz com arte.

© Gabriel Gábi Gabirusco, 2015 (ou 2016)

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© Gabriel Gábi Gabirusco, 2020

(RE)DESCOBRINDO A PRÓPRIA ESCOLA – Em maio de 2017 fui contatado por uma amiga professora com um convite para visitar a escola onde ela dava aulas de sensibilização e expressividade artística para uma criançada do Ensino Fundamental. Já tinham passado por ilustração e pintura, e naquele trimestre estavam debruçados na fotografia. Ela disse que gostaria de aproveitar a oportunidade para as crianças conhecerem pessoalmente alguém desse meio, e que seria ainda mais simbólico se esse alguém tivesse sido aluno daquela mesma escola – ela professora e eu visitante, tínhamos sido alunos lá até 1997.
 
Enquanto ela explicava a ideia com mais detalhes imediatamente lembrei da ocasião que o escritor Paulo Mendes Campos visitou a escola onde eu estudava na época, anos antes e ainda no Rio de Janeiro. A ponte era uma colega de classe – a Carolina – que era neta dele. Lembrei emocionado como tinha sido incrível a satisfação de conhecer “alguém de verdade“, de formularmos em classe com ajuda da professora as perguntas que gostaríamos de fazer a ele, e que mostravam a curiosidade que tínhamos de conhecer alguém que era escritor e poeta – mesmo que lá em 1990 não tivéssemos grande noção do tamanho de um Paulo Mendes Campos na literatura brasileira.
 
A professora Sílvia e eu debatemos alguns caminhos que a visita poderia ter e chegamos juntos num formato que iria misturar conversa e prática, e nas palavras dela para a Diretoria da escola, ficou assim :
 
Após trabalhar com os alunos alguns elementos importantes para a apreciação de imagens, adentramos recentemente as questões da subjetividade do olhar, as interpretações de cada observador e os significados particulares de cada imagem produzida por um(a) artista. Para isso, os alunos serão convidados a prestarem atenção no mundo que os rodeia, a pensarem sobre o que enxergam e a expressarem o que sentem com este exercício. O instrumento de expressão artística que será utilizado será a fotografia. Com o objetivo de refletir sobre como enxergamos os pequenos detalhes da vida cotidiana e como expressamos nossa percepção, proponho a visita do fotógrafo F.Pepe Guimarães à escola com a proposta de uma oficina para os alunos do Integral IV. A experiência contribuirá com o processo de aprendizagem, na medida em que os colocará em contato com uma perspectiva de um olhar fotográfico profissional. O ministrante da oficina conversará com os alunos sobre sua experiência pessoal e profissional com a fotografia e sobre as possíveis impressões que a imagem pode provocar no observador. A oficina estimulará a observação dos espaços da escola através do “enquadramento” produzido pelo instrumento da câmara escura e o registro fotográfico desta experiência. Os alunos observarão os espaços em busca de enquadramentos que representem marcas significativas, detalhes poéticos “invisíveis”, descasos/cuidados, elementos visuais que exprimem ideias e sentimentos importantes para eles.
 
CURIOSIDADE, CONVÍVIO E VISÃO DE MUNDO ATRAVÉS DA IMAGEM :
atividade 1 – conversa e projeção de imagens; trajetória pessoal e de trabalho na fotografia; apresentando Lartigue e Kertesz
atividade 2 – exercício de observação do ambiente escolar através de pequenos orifícios
atividade 3 – prática de fotografia analógica com câmeras compactas automáticas

Atividade 1: bate papo trajetórias + Jacques Henri Lartigue e André Kertesz

Atividade 1: bate papo trajetórias + Jacques Henri Lartigue e André Kertesz

Atividade 2: exercício de observação do ambiente escolar através de pequenos orifícios

Atividade 3: prática de fotografia analógica com câmeras compactas automáticas

Avaliação de atividade: fotografia registrada na cacholinha !

CONTEÚDO SUGERIDO (1)
“Jacques Henri Lartigue” (1894 – 1986)
https://www.lartigue.org/en/
Jacques Lartigue foi apresentado à fotografia no início dos anos 1900 quando seu pai deu a ele uma câmera, em 1902. Jacques tinha 8 anos de idade. Apesar de ter fotografado muito desde então, suas imagens ficaram desconhecidas até 1963, quando aos 69 anos de idade teve uma exibição individual no Museum of Modern Art, de Nova York. No mesmo ano, algumas de suas fotografias foram publicadas na edição da revista Life que falava sobre a morte de John Fitzgerald Kennedy, e isso apresentou o trabalho de Lartigue para o público em geral. Para sua própria surpresa ele rapidamente se tornou uma dos fotógrafos mais importantes do séc. XX.
CONTEÚDO SUGERIDO (2)
“André Kertész” (1894 – 1985)
International Center of Photography
André Kertész está entre aqueles que moldaram o estilo da fotografia moderna. Seu espírito de independência o levou, desde os anos 1910, a praticar uma arte da espontaneidade e da sinceridade, à procura dos instantes de graça fortuita que fixam o caráter próprio das coisas. Terno, nostálgico, pudico, ele revelou novos caminhos para a fotografia, na borda poética do realismo, sem insistência nem ênfase. “Eu nunca documento, eu apresento uma interpretação”, ele disse. – texto de Danièle Sallenave em edição do Photo Poche nro 7 da Cosac Naify