calendário 2021

Calendário 2021

Curiosidades sobre as fotos que fazem parte do nosso calendário disponível na lojinha.

Estava em Santos por poucos dias. Apenas uma passada rápida no início de um roteiro que ainda levaria cerca de 70 dias e tinha destino final Medellín, na Colômbia. O trajeto seria todo feito por rotas terrestres, viajando de ônibus trechos longos entre 7 países. Santos era a primeira cidade/parada, e sua inclusão no roteiro foi mais estratégica do que prática. Santos me lembra o Rio de Janeiro da época em que era criança: uma cidade praiana bem estruturada, super movimentada, mas ainda assim pequena e pacata. Buscava calma e conexão, para me sentir afastando de casa aos poucos, ganhando corpo na própria estrada. Seis da manhã na orla da praia. Havia saído para observar e fotografar o movimento de pessoas usando as ciclovias da cidade para chegar ao trabalho. A essa hora da manhã, basicamente trabalhadores do porto e do comércio em geral. Linhas retas, dureza bruta em meio a curvas e cores quentes da areia e do céu.

Porto Alegre foi a terceira cidade/parada do mesmo trajeto que me levaria a Medellín, e última antes de sair do Brasil. Em seguida continuaria baixando mais para o Sul (Montevideo e Buenos Aires) antes de seguir para oeste (Santiago) e subir tudo pelo outro lado do continente. Em Porto Alegre eu estava sozinho hospedado num apartamento emprestado por alguém que pouco me conhecia – e havia viajado. Circulei muito pela cidade vazia em feriado de Natal, e isso reforçou em mim a sensação e a vontade de continuar saindo em direção a outros lados, outras terras, outras águas. Vento e movimento me inflavam por dentro.

Estava 

Uma das primeiras recomendações que tive de pessoas locais ao chegar em Lima foi que evitasse um determinado bairro vizinho de onde eu estava hospedado. Estava seguindo a recomendação à risca. Até o dia que um dia de pedalada e pesquisas pela cidade acabou naturalmente me aproximando e me colocando literalmente dentro do tal bairro. Localizei um grande cerro que contava com uma vista panorâmica da cidade. Eu já estava havia quase uma semana em Lima, me virando super bem e identificado com as dinâmicas dos lugares e das pessoas. Eu pulsava vida e senti que quebrar a recomendação não traria riscos se eu mantivesse os olhos vivos e o faro fino. Pedindo orientação aqui e ali fui achando o caminho que conduzia ao topo do Morro Solar. Gastei boas horas lá em cima entendendo um pouco melhor a geografia daquela parte da cidade e conversando com um senhor de fala mansa e olhar certeiro que era vigia/morador de um pequeno santuário religioso lá no alto.

Conheci em Lima um grupo de ciclistas urbanos que trabalha pela preservação da memória material histórica das culturas pré-hispânicas. Em uma manhã de domingo saímos de passeio para percorrer diferentes pontos da cidade onde estão localizadas algumas das diversas huacas (wak’a) presentes na cidade. Essa é a Wak’a Huallamarca, localizada no bairro de San Isidro, e é assim conservada por ter passado por um amplo processo de restauro há alguns anos, que praticamente a reconstruiu por inteiro. Investigações históricas dão conta que essa huaca passou por três momentos e funções distintas de ocupação: como edifício público, como cemitério, e como ocupação doméstica, por sociedades que se desenvolveram na região entre os anos de 200 a.C. até cerca de 1532 d.C.

Uma vontade imensa de descer do veículo onde estava; ficar de pé em meio a essas montanhas com 360 graus à disposição do olhar; caminhar ao lado de montanhas gigantescas e sentir dentro da pele a certeza do tamanho humano na escala da Natureza; achar uma área plana, montar barraca e passar a noite olhando estrelas; e no dia seguinte seguir caminho pedalando suave e calmamente por essa linda estrada cheia de curvas em meio a Cordilheira. Foi o que senti ao passar pelo Paso Internacional Los Libertadores, bem fronteira entre Argentina e Chile. Paso muito mais famoso pelos Caracoles (sequência de curvas em um desnível vertical absurdo!), mas que reserva lindas paisagens ao longo de todo caminho.

Em outro ponto da Cordilheira, bem ao redor da capital Santiago, um povoado cuja estrutura estava quase toda montada em função das temporadas de inverno e da estação de esqui ali existente. Em uma manhã de janeiro tudo o que se ouvia era o barulho do vento cortar um grande silêncio ao redor, com o povoado esvaziado pelo verão. Estava bem cedo e fazia um frio levemente gostoso. Eu havia chegado no Chile no fim do dia anterior e sido levado a essas montanhas por meus anfitriões para uma celebração entre amigos. Estava hipnotizado pela sequência de cumes no horizonte e pelas mil possibilidades de caminhos e trilhas que avistava entrecortando as paredes de vegetação rala e muitas pedras.

Em meio ao calor e a seca, olhando ao redor tudo é quente. A vegetação alaranjada evidencia aos olhos e o vento faz sentir o calor direto na pele. Mas em um instante e lá está ele. O corredor de buritis avisa que a água resiste em brotar do solo, e se organiza em fileiras para acompanhar e proteger a área encharcada que se forma. Passeando pelo Cerrado e observando a paisagem, não se vê grandes quantidades de água na superfície. Para achar grande reserva hídrica, é necessário ir bem para dentro em camadas mais profundas do solo. É lá que está o grande reservatório de água deste bioma – os lençóis freáticos. Essa analogia simboliza o maior aprendizado dessa ida a Chapada dos Veadeiros. Em algum lugar interno eu voltei dolorido de lá, e fez parte do processo primeiro identificar bem onde doía, como doía e o que fazer para dissipar a dor sem mascará-la com camadas analgésicas. Olhar bem para dentro e achar onde era água, sabendo que lá em cima, estaria o buriti acompanhando, protegendo e esperando.

Caminhar pelas ruas de Quito é perceber-se em meio à história. Fortes laços da cultura Andina, tanto na presença quanto na forma de relação entre as pessoas. Em Quito é preciso saber reconhecer os limites entre seu espaço e o espaço alheio, com respeito, atenção e cuidados. Cravada no meio da Cordilheira, em um altiplano fino e comprido onde antes havia uma cidade inca, cercada por montanhas e vulcões. Caminhar pelas ruas de Quito é perceber-se consigo mesmo: um corpo ativo com respiração ofegante que quer sempre ir mais um pouquinho para cima. A magia das montanhas é especial em Quito. Está presente no cotidiano tanto nos horizontes cheios de cumes quanto no orgulho das pessoas em sentir-se integradas às suas raízes geográficas e culturais: “soy de montaña“! Essa fotografia foi feita por ocasião da visita para participar do 8o. Fórum Mundial da Bicicleta.

A paisagem mais urbana nessa edição do calendário é a que deixa mais à tona uma das grandes magias da fotografia: a de que interpretação e leitura da imagem são coisas muito pessoais, subjetivas e amplas em possibilidades. O repertório, as experiências de vida e até mesmo o humor momentâneo em cada leitor-observador, influenciam como ele olhará para cada imagem específica; o que irá sentir e pensar. Acredito que essa fotografia feita na Av. Paulista é imensa em possibilidades de interpretação, e por conta disso não vou comentar nada específico, mas apenas convidar que diferentes olhares sejam lançados a ela.

Se estava com medo? Mais que a espuma das ondas, estava branco, completamente branco de medo. Mas, ao me encontrar afinal só, só e independente, senti uma súbita calma. Era preciso começar a trabalhar rápido, deixar a África para trás, e era exatamente o que eu estava fazendo. Era preciso vencer o medo; e o grande medo, meu maior medo na viagem, eu venci ali, naquele mesmo instante, em meio à desordem dos elementos e à bagunça daquela situação. Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o maior risco que corri: não partir.” (Amyr Klink – Cem dias entre céu e mar , 1985 – Cia das Letras / Cia de Bolso). Em Outubro de 2010 fui ao Rio de Janeiro abastecer de origens pessoais alguns medos e dúvidas que vinha sentido em relação a futuro e trabalho. A F14 Fotografia já funcionava vagarosamente mas ainda não existia de fato. No dia de voltar a SP acordei cedo para ver o dia raiando na praia. Sair para mar aberto foi a melhor cena que poderia ter me aparecido naqueles dias.

Foi o barulho de marteladas em algo metálico que me chamou atenção para essa cena. Eu não estava tão próximo dela, e tive que ir procurando a origem do som, caminhando pela areia até me identificar e chegar perto. De início me posicionei de frente para os barcos, mas logo percebi que o cenário às minhas costas faria falta à imagem. Contornei os barcos, abri bem o ângulo da lente e apenas deixei que tudo que acontecia ali ao redor entrasse e participasse da foto sem qualquer interferência minha.